quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Nascimento de Cristo, eis o esperado das nações...

          A festividade do Natal fascina, tanto hoje como outrora, mais do que as outras grandes festas da Igreja; fascina porque todos, de certo modo, intuem que o nascimento de Jesus tem a ver com as aspirações e as esperanças mais profundas do homem. O consumismo pode distrair desta saudade interior, mas se no coração existe o desejo de receber aquele Menino que traz a novidade de Deus, que veio para nos oferecer a vida em plenitude, as luzes dos adornos natalícios podem tornar-se sobretudo um reflexo da Luz que se acendeu mediante a Encarnação de Deus.
          Nas celebrações litúrgicas destes dias santos vivemos de maneira misteriosa mas real a entrada do Filho de Deus no mundo e fomos iluminados mais uma vez pela luz do seu fulgor. Cada celebração é presença atual do mistério de Cristo e, nela, prolonga-se a história da salvação. A propósito do Natal, o Papa são Leão Magno afirma: «Embora a sucessão das obras corpóreas agora tenha passado, como foi ordenado antecipadamente no desígnio eterno..., todavia nós adoramos continuamente o mesmo parto da Virgem que produz a nossa salvação» (Sermão sobre o Natal do Senhor, 29, 2), e esclarece: «Porque aquele dia não passou, de tal modo que tenha passado também o poder da obra que então foi revelada» (Sermão sobre a Epifania, 36, 1). Celebrar os acontecimentos da Encarnação do Filho de Deus não é uma simples recordação de eventos do passado, mas significa tornar presentes aqueles mistérios portadores de salvação. Na Liturgia, na celebração dos Sacramentos, aqueles mistérios fazem-se atuais e tornam-se eficazes para nós, hoje. São Leão Magno afirma novamente: «Tudo aquilo que o Filho de Deus fez e ensinou para reconciliar o mundo, não o conhecemos somente através da narração de obras levadas a cabo no passado, mas vivemos sob o efeito do dinamismo de tais obras presentes» (Sermão 52, 1).
          Na Constituição sobre a sagrada liturgia, o Concílio Vaticano II ressalta o modo como a obra da salvação realizada por Cristo continua na Igreja, mediante a celebração dos santos mistérios, graças à ação do Espírito Santo. Já no Antigo Testamento, no caminho rumo à plenitude da fé, temos testemunhos do modo como a presença e a ação de Deus é interposta através dos sinais, por exemplo o sinal do fogo (cf. Êx 3, 2 ss.; 19, 18). Mas a partir da Encarnação realiza-se algo surpreendente: o regime de contacto salvífico com Deus transforma-se radicalmente e a carne torna-se o instrumento da salvação: «Verbum caro factum est», «o Verbo fez-se carne», escreve o evangelista João, enquanto um autor cristão do século III, Tertuliano, afirma: «Caro salutis est cardo», «a carne é o fulcro da salvação» (De carnis resurrectione, 8, 3: PL 2, 806).
          O Natal é já o primeiro fruto do «sacramentum-mysterium paschale», ou seja, o princípio do mistério central da salvação que culmina na paixão, morte e ressurreição, porque Jesus dá início à oferenda de si mesmo por amor, desde o primeiro instante da sua existência humana, no seio da Virgem Maria. Por conseguinte, a noite de Natal está profundamente vinculada à grande vigília da noite da Páscoa, quando a redenção se realiza no sacrifício glorioso do Senhor morto e ressuscitado. O próprio presépio, como imagem da Encarnação do Verbo, à luz da narração evangélica, já alude à Páscoa, e é interessante ver como em alguns ícones da Natividade, na tradição oriental, o Menino Jesus é representado envolto em faixas e colocado numa manjedoura que tem a forma de um sepulcro; uma alusão ao momento em que Ele será deposto da cruz, envolvido num lençol e depositado num sepulcro escavado na rocha (cf. Lc 2, 7; e 23, 53). Encarnação e Páscoa não se encontram uma ao lado da outra, mas constituem os dois pontos-chave inseparáveis da única fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus Encarnado e Redentor. Cruz e Ressurreição pressupõem a Encarnação. Só porque verdadeiramente o Filho, e nele o próprio Deus, «desceu» e «se fez carne», a morte e a ressurreição de Jesus constituem acontecimentos que nos são contemporâneos e nos dizem respeito, nos arrebatam da morte e nos abrem para um futuro em que esta «carne», a existência terrena e transitória, entrará na eternidade de Deus. Nesta perspectiva unitária do Mistério de Cristo, a visita ao presépio orienta para a visita à Eucaristia, onde está presente de modo real o Cristo crucificado e ressuscitado, o Cristo vivo.
          Então, a celebração litúrgica do Natal não representa apenas uma recordação, mas é sobretudo um mistério; não é só memória, mas também presença. Para captar o sentido destes dois aspectos inseparáveis, é necessário viver intensamente todo o Tempo natalício como a Igreja o apresenta. (...) Com efeito, a data de 25 de Dezembro, única à idéia da manifestação solar — Deus que aparece como luz sem ocaso, no horizonte da história — recorda-nos que não se trata unicamente de uma idéia, aquela segundo a qual Deus é a plenitude da luz, mas de uma realidade para nós homens já realizada e sempre atual: tanto hoje como outrora, Deus revela-se na carne, ou seja, no «corpo vivo» da Igreja peregrina no tempo, e nos Sacramentos concede-nos hoje a salvação.
          (...) É necessário resgatar este Tempo natalício de um revestimento demasiado moralista e sentimental. A celebração do Natal não nos propõe apenas alguns exemplos a imitar, como a humildade e a pobreza do Senhor, a sua benevolência e o seu amor pelos homens; mas é sobretudo um convite a deixar-se transformar totalmente por Aquele que entrou na nossa carne. São Leão Magno exclama: «O Filho de Deus... uniu-se a nós e vinculou-nos a si de tal modo que a humilhação de Deus até à condição humana se tornasse uma elevação do homem até às alturas de Deus» (Sermão sobre o Natal do Senhor, 27, 2). A manifestação de Deus tem como finalidade a nossa participação na vida divina, na realização em nós mesmos do mistério da sua Encarnação. Tal mistério constitui o cumprimento da vocação do homem. São Leão Magno explica-nos novamente a importância concreta e sempre atual do mistério do Natal para a vida cristã: «As palavras do Evangelho e dos Profetas... inflamam o nosso espírito e ensinam-nos a compreender a Natividade do Senhor, este mistério do Verbo que se fez carne, não tanto como uma recordação de um acontecimento passado, mas sobretudo como um fato que se realiza sob os nossos olhos... é como se, na solenidade hodierna, ainda se proclamasse: “Anuncio-vos uma grande alegria, que será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu para vós um Salvador, que é Cristo Senhor”» (Sermão sobre o Natal do Senhor, 29, 1). E acrescenta: «Reconhece, cristão, a tua dignidade e, tendo-te tornado partícipe da natureza divina, presta atenção a não recair, com uma conduta indigna, de tal grandeza na baixeza primitiva» (Sermão 1 sobre o Natal do Senhor, 3).
          Estimados amigos, vivamos este Tempo natalício com intensidade: depois de termos adorado o Filho de Deus que se fez homem e foi colocado numa manjedoura, agora somos chamados a passar ao altar do Sacrifício, onde Cristo, o Pão que desceu do céu, se nos oferece como verdadeiro alimento para a vida eterna. E aquilo que nós vimos com os nossos olhos, na mesa da Palavra e do Pão de Vida, o que contemplamos, aquilo que as nossas mãos tocaram, ou seja o Verbo que se fez carne, anunciemo-lo com alegria ao mundo e testemunhemo-lo generosamente com toda a nossa vida. Renovo de coração a todos vós e aos vossos entes queridos os sinceros bons votos para o Novo Ano.


Quarta feira, 05 de janeiro de 2011

domingo, 30 de outubro de 2011

E depois do fogo, o murmúrio de uma brisa suave...

“Tudo que é definitivo nasce e amadurece no seio do silêncio: a vida, a morte, o além, a graça, o pecado. O palpitante sempre está latente.”
(Inácio Larrañaga)
        
         Há quem se incomode e se desconcerte com uma palavra simples, singela, límpida, que a princípio não traz nenhuma objeção, apesar de ser direta e possuir grande significado: Silêncio!
          Atualmente, chega até ser desafiante tratar desse assunto. Vivemos numa época onde não se cultiva mais a calmaria, o sossego, a tranqüilidade..., embora se encontre muitos que preservam esses valores, como por exemplo, aqueles que não trocam a serenidade do espaço rural pelo movimento urbano. Aqueles que sabem ponderar o tempo entre uma boa música e uma boa leitura. Mas nos dias de hoje, não é a maioria.
          E quando o assunto é Oração? Podemos perceber que silêncio e oração são duas palavras dependentemente ligadas.
          Trazendo para nós católicos, é triste afirmar que nem todos buscam no recolhimento, uma vida íntima com Cristo. Esquivamo-nos deste bem, deixando de experimentar as “maravilhas de Deus” através de puros afetos, onde elevamos a nossa alma até Ele. Mas como progredir na oração, se me perco todas às vezes que silencio? É claro que  sem o auxílio do Espírito Santo, jamais poderíamos dar passos, mas estes dependerão muito de nossos freqüentes esforços. Vale lembrar que o auxílio de um diretor espiritual é indispensável. Outro ponto marcante que nos deixa estacionados, são as distrações voluntárias e involuntárias. Essas exigem de nós, para que não nos prendamos em suas redes, princípios de mortificação. Para quem quer buscar uma vida de oração, não pode se entregar a pensamentos vãos, desnecessários, e se mesmo assim eles vierem, devem ser combatidos o mais rápido possível. “Eleva o pensamento, ao céu sobe. Por nada te angusties, nada te perturbe.” (Santa Teresa de Jesus).
          Há momentos únicos em nossa vida que não podem ser descartados. O profeta Elias encontrou a Deus numa leve brisa, depois de passar um furacão, um terremoto e ainda, chamas de fogo. Tantas são as situações que nos preocupam, impedindo-nos de adentrar em nós mesmos. Quanto mais essas situações nos inquietam, mais perto estamos de perder o controle e a paz.
         Vemos na Virgem Maria alguém que caminhou em terra firme. Ao contemplarmos sua vida escondida, podemos perceber em seu silêncio fecundo a serenidade que suas virtudes emanam em nossa vida: receptividade, plenitude, profundidade, simplicidade... Durante sua vida, soube silenciar mediante as situações, inclusive de dor e sofrimento.
         O que não pode faltar em nós é a alegria de recomeçar. Ir ao encontro de Deus! Momentos de reflexão, meditação, auto-exames, boas leituras, são essências para que busquemos tenazmente um ímpeto maior, que nos leve ao encontro Daquele que está dentro de nós.

Quer uma sugestão sobre oração? Há livros muito qualificados que podem te ajudar, sugiro aqui:
- Caminho de perfeição (Santa Teresa de Jesus)
- O silêncio de Maria (Inácio Larrañaga)


Ir. Leonardo do Coração de Jesus, FPSS

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

São Francisco, ícone vivo de Jesus

Queridos irmãos e irmãs:


          Em uma catequese recente, ilustrei o papel providencial que a Ordem dos Frades Menores e a Ordem dos Pregadores, fundados respectivamente por São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão, tiveram na renovação da Igreja da sua época. Hoje, eu gostaria de apresentar-vos a figura de Francisco, um autêntico “gigante” da santidade, que continua fascinando muitíssimas pessoas de todas as idades e religiões.
          “Nasceu para o mundo um sol”: com estas palavras, na “Divina Comédia” (Paraíso, Canto XI), o máximo poeta italiano Dante Alighieri alude ao nascimento de Francisco, no final de 1181 ou início de 1182, em Assis. Pertencente a uma família rica – seu pai era comerciante de tecidos –, Francisco transcorreu uma adolescência e uma juventude despreocupadas, cultivando os ideais de cavalaria da época. Aos 20 anos, fez parte de uma campanha militar e foi preso. Ficou doente e foi libertado. Após sua volta a Assis, começou nele um lento processo de conversão espiritual, que o levou a abandonar gradualmente o estilo de vida mundano que havia levado até então. A este período correspondem os célebres episódios do encontro com o leproso, a quem Francisco, descendo do cavalo, deu o beijo da paz, e da mensagem do Crucificado na pequena igreja de São Damião. Em três ocasiões, o Cristo na cruz adquiriu vida e lhe disse: “Vai, Francisco, e repara minha Igreja, que está em ruínas”. Este simples acontecimento da palavra do Senhor ouvida na igreja de São Damião esconde um simbolismo profundo. Imediatamente, São Francisco foi chamado a reparar esta pequena igreja, mas o estado ruinoso deste edifício era o símbolo da situação dramática e inquietante da própria Igreja nessa época, com uma fé superficial que não forma e não transforma a vida, com um clero pouco zeloso, com o esfriamento do amor; uma destruição interior da Igreja que comportou também uma decomposição da unidade, com o nascimento de movimentos hereges. Contudo, nessa Igreja em ruínas, o Crucifixo está no centro e fala: convida à renovação, chama Francisco a um trabalho manual para reparar concretamente a pequena igreja de São Damião, símbolo do chamado mais profundo a renovar a própria Igreja de Cristo, com sua radicalidade de fé e com seu entusiasmo de amor por Cristo.
Este acontecimento, ocorrido provavelmente em 1205, faz pensar em outro acontecimento similar, ocorrido em 1207: o sonho do Papa Inocêncio III. Este viu em sonhos que a Basílica de São João de Latrão, a igreja mãe de todas as igrejas, estava desmoronando e que um religioso pequeno e insignificante a escorava com os ombros, para que não caísse. É interessante notar, por um lado, que não é o Papa quem ajuda para que a Igreja não caia, mas um religioso pequeno e insignificante, que o Papa reconhece em Francisco quando este o visita. Inocêncio III era um papa poderoso, de grande cultura teológica, como também de grande poder político e, no entanto, não é ele quem renova a Igreja, e sim um pequeno e insignificante religioso: é São Francisco, chamado por Deus. Por outro lado, no entanto, é importante observar que São Francisco não renova a Igreja sem ou contra o Papa, mas em comunhão com ele. As duas realidades estão juntas: o Sucessor de Pedro, os bispos, a Igreja fundada sobre a sucessão dos apóstolos e o carisma novo que o Espírito Santo cria nesse momento para renovar a Igreja. Na comunhão se dá a verdadeira renovação.
          Voltemos à vida de São Francisco. Dado que seu pai, Bernardone, reprovava sua grande generosidade com os pobres, Francisco, na frente do bispo de Assis, com um gesto simbólico, despojou-se de todas as suas roupas, pretendendo, assim, renunciar à herança paterna: como no momento da criação, Francisco não tinha nada, a não ser a vida dada por Deus, em cujas mãos se entregou. Depois, viveu como um eremita, até que, em 1208, houve outro acontecimento fundamental no itinerário da sua conversão. Escutando uma passagem do Evangelho de Mateus – o discurso de Jesus aos apóstolos enviados à missão –, Francisco se sentiu chamado a viver na pobreza e a dedicar-se à pregação. Outros companheiros se uniram a ele e, em 1209, ele se dirigiu a Roma, para submeter ao Papa Inocêncio III o projeto de uma nova forma de vida cristã. Recebeu um acolhimento paternal por parte daquele grande pontífice que, iluminado pelo Senhor, intuiu a origem divina do movimento suscitado por Francisco. O Pobrezinho de Assis havia compreendido que todo carisma dado pelo Espírito Santo deve ser colocado ao serviço do Corpo de Cristo, que é a Igreja; portanto, agiu sempre em comunhão plena com a autoridade eclesiástica. Na vida dos santos não há contraposição entre carisma profético e carisma de governo e, se houver alguma tensão, estes sabem esperar com paciência os tempos do Espírito Santo.
          Na realidade, alguns historiadores do século XIX e também do século passado tentaram criar atrás do Francisco da tradição um “Francisco histórico”, assim como se tenta criar atrás do Jesus dos evangelhos um “Jesus histórico”. Este Francisco histórico não teria sido um homem de Igreja, mas um homem unido imediatamente só a Cristo, um homem que pretendia criar uma renovação do povo de Deus, sem formas canônicas e sem hierarquia. A verdade é que São Francisco teve realmente uma relação imediatíssima com Jesus e com a Palavra de Deus, à qual queria seguir sine glossa, assim como ela é, em toda a sua radicalidade e verdade. É verdade também que, inicialmente, ele não tinha a intenção de criar uma ordem com as formas canônicas necessárias, mas simplesmente, com a Palavra de Deus e com a presença do Senhor, queria renovar o povo de Deus, convocá-lo novamente à escuta da Palavra e à obediência a Cristo. Além disso, sabia que Cristo nunca é “meu”, e sim sempre “nosso”, que não posso ter Cristo sozinho e construir “eu”, contra a Igreja, contra sua vontade e seu ensinamento, mas somente na comunhão da Igreja constituída sobre a sucessão dos apóstolos se renova também a obediência à Palavra de Deus.
          Também é verdade que ele não tinha a intenção de criar uma nova ordem, mas somente renovar o povo de Deus para o Senhor que vem. Porém, compreendeu, com sofrimento e com dor, que tudo deve ter sua ordem, que também o direito da Igreja é necessário para dar forma à renovação e, assim, realmente se inseriu de forma total, com o coração, na comunhão da Igreja, com o Papa e com os bispos. Ele sempre soube que o centro da Igreja é a Eucaristia, na qual o Corpo de Cristo e seu Sangue estão presentes. Através do sacerdócio, a Eucaristia é a Igreja. Onde o sacerdócio, Cristo e a comunhão da Igreja caminham juntos, somente aí habita também a Palavra de Deus. O verdadeiro Francisco histórico é o Francisco da Igreja e, precisamente dessa maneira, ele fala também a nós, os crentes, e aos crentes de outras confissões e religiões.
          Francisco e seus frades, cada vez mais numerosos, estabeleceram-se na Porciúncula – ou igreja de Santa Maria dos Anjos –, lugar sagrado por excelência da espiritualidade franciscana. Também Clara, uma jovem mulher de Assis, de família nobre, entrou na escola de Francisco. Teve origem, assim, a Segunda Ordem Franciscana, a das Clarissas, outra experiência destinada a produzir frutos insignes de santidade na Igreja.
          Também o sucessor de Inocêncio III, o Papa Honório III, com sua bula Cum dilecti, de 1218, apoiou o singular desenvolvimento dos primeiros Frades Menores, que iam abrindo suas missões em diversos países da Europa, inclusive em Marrocos. Em 1219, Francisco obteve autorização para dirigir-se ao Egito e falar com o sultão muçulmano Melek-el-Kâmel, para pregar também lá o Evangelho de Jesus. Eu gostaria de sublinhar este episódio da vida de São Francisco, que tem uma grande atualidade. Em uma época em que estava em curso um enfrentamento entre o cristianismo e o islã, Francisco, armado voluntariamente só com sua fé e sua mansidão pessoais, percorreu com eficácia o caminho do diálogo. As crônicas nos falam de um acolhimento benevolente e de uma cordial recepção do sultão. Este é um modelo que deve inspirar, ainda hoje, as relações entre cristãos e muçulmanos, para promover um diálogo na verdade, no respeito e na compreensão mútuos (cf. Nostra Aetate, 3). Parece então que Francisco esteve na Terra Santa em 1220, lançando assim uma semente, que deu muitos frutos: seus filhos espirituais, de fato, fizeram dos Lugares Santos onde Jesus viveu um âmbito privilegiado de sua missão. Penso, com gratidão, nos grandes méritos da Custódia Franciscana da Terra Santa.
          Ao voltar à Itália, Francisco entregou o governo da Ordem ao seu vigário, Frei Pedro Cattani, enquanto o Papa confiou à proteção do cardeal Ugolino, o futuro Sumo Pontífice Gregório IX, a Ordem, que reunia cada vez mais adesões. Por sua vez, o fundador, dedicado completamente à pregação – que levava a cabo com grande êxito –, redigiu uma Regra, depois aprovada pelo Papa.
          Em 1224, no eremitério de Verna, Francisco viu o Crucifixo em forma de um serafim e, do encontro com o serafim crucificado, recebeu os estigmas; converteu-se, assim, em um com Cristo: um dom, portanto, que exprime sua identificação com o Senhor.
          A morte de Francisco – seu transitus – ocorreu na noite de 3 de outubro de 1226, na Porciúncula. Após ter abençoado seus filhos espirituais, morreu, deitado sobre a terra nua. Dois anos mais tarde, o Papa Gregório IX o inscreveu no elenco dos santos. Pouco tempo depois, erigiu-se em Assis uma grande basílica em sua honra, meta, ainda hoje, de muitíssimos peregrinos, que podem venerar o túmulo do santo e desfrutar da visão dos afrescos de Giotto, pintor que ilustrou de forma magnífica a vida de Francisco.
          Já foi dito que Francisco representa um alter Christus; era verdadeiramente um ícone vivo de Cristo. Ele também foi chamado de “irmão de Jesus”. De fato, este era o seu ideal: ser como Jesus, contemplar o Cristo do Evangelho, amá-lo intensamente, imitar suas virtudes. Em particular, ele quis dar um valor fundamental à pobreza interior e exterior, ensinando-a também aos seus filhos espirituais. A primeira bem-aventurança do Sermão da Montanha – “Felizes os pobres, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5, 3) – encontrou uma luminosa realização na vida e nas palavras de São Francisco. Verdadeiramente, queridos amigos, os santos são os melhores intérpretes da Bíblia; estes, encarnando em sua vida a Palavra de Deus, tornam-na mais atraente que nunca, de forma que ela fala realmente conosco. O testemunho de Francisco, que amou a pobreza para seguir Cristo com dedicação e liberdade totais, continua sendo, também para nós, um convite a cultivar a pobreza interior para crescer na confiança em Deus, unindo também um estilo de vida sóbrio e um desapego dos bens materiais.
          Em Francisco, o amor a Cristo se expressou de maneira especial na adoração ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Nas Fontes Franciscanas, lemos expressões comoventes, como esta: “Pasme o homem todo, estremeça a terra inteira, rejubile o céu em altas vozes quando, sobre o altar, estiver nas mãos do sacerdote o Cristo, Filho de Deus vivo! Ó grandeza maravilhosa, ó admirável condescendência! Ó humildade sublime, ó humilde sublimidade! O Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, se humilha a ponto de se esconder, para nosso bem, na modesta aparência do pão” (Francisco de Assis, Escritos).
          Neste Ano Sacerdotal, quero também recordar a recomendação dirigida por Francisco aos sacerdotes: “Ao celebrar a Missa, ofereçam o verdadeiro sacrifico do Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pessoalmente puros, com disposição sincera, com reverência e com santa e pura intenção” (Francisco de Assis, Escritos). Francisco mostrava sempre um grande respeito pelos sacerdotes e recomendava respeitá-los sempre, inclusive no caso de que pessoalmente fossem pouco dignos. A motivação do seu profundo respeito era o fato de que eles receberam o dom de consagrar a Eucaristia. Queridos irmãos no sacerdócio, não nos esqueçamos jamais deste ensinamento: a santidade da Eucaristia nos pede que sejamos puros, que vivamos de maneira coerente com o Mistério que celebramos.
          Do amor a Cristo nasce o amor às pessoas e também a todas as criaturas de Deus. Este é outro traço característico da espiritualidade de Francisco: o senso de fraternidade universal e de amor pela criação, que lhe inspirou o célebre “Cântico das criaturas”. É uma mensagem muito atual. Como recordei em minha recente encíclica, Caritas in veritate, só é sustentável um desenvolvimento que respeite a criação e que não danifique o meio ambiente (cf. N. 48-52), e na Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, sublinhei que também a constituição de uma paz sólida está unida ao respeito pela criação. Francisco nos recorda que na criação se manifesta a sabedoria e a benevolência do Criador. A natureza é entendida por ele precisamente como uma linguagem com a qual Deus fala conosco, através da qual a realidade divina se torna transparente e podemos falar de Deus e com Deus.

Cidade do Vaticano, 27 de janeiro de 2011

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

...por que não descobrir a Bíblia?

               Quando temos um momento de pausa nas nossas atividades, de modo especial durante as férias, muitas vezes pegamos num livro, que desejamos ler. É precisamente este o primeiro aspecto, sobre o qual hoje gostaria de meditar. Cada um de nós tem necessidade de momentos e de espaços de recolhimento, de meditação e de calma... Graças a Deus é assim! Com efeito, esta exigência diz-nos que não fomos feitos apenas para trabalhar, mas também para pensar, ponderar, ou simplesmente para acompanhar com a mente e o coração uma narração, uma história com a qual nos identificamos, num certo sentido, “perder-nos”, para depois nos encontrarmos enriquecidos.
                Naturalmente, muitos destes livros de leitura, que temos nas nossas mãos durante as férias, são sobretudo de evasão, isto é normal. Todavia, várias pessoas, especialmente se podem contar com espaços de pausa e de descanso mais prolongados, dedicam-se à leitura de algo mais comprometedor. Então, gostaria de lançar uma proposta: por que deixar de descobrir alguns livros da Bíblia, que normalmente não são conhecidos? Ou dos quais, talvez, ouvimos alguns trechos durante a Liturgia, mas que nunca lemos na íntegra? Com efeito, muitos cristãos já não lêem a Bíblia e têm um seu conhecimento muito limitado e superficial. A Bíblia - como diz o nome - é uma coletânea de livros, uma pequena “biblioteca”, nascida ao longo de um milênio. Alguns destes “livrinhos” que a compõem permanecem quase desconhecidos para a maior parte das pessoas, inclusive de bons cristãos. Alguns são muito breves, como o livro de Tobias, uma narração que contém um sentido muito elevado da família e do matrimônio; ou do livro de Ester, em que a rainha judia, com a fé e a oração, salva o seu povo do extermínio; ou ainda mais breve, o livro de Rute, uma estrangeira que conhece Deus e experimenta a sua providência. Estes pequenos livros podem ser lidos inteiramente numa hora. Mais exigentes, e autênticas obras-primas, são o livro de Jó, que enfrenta o grande problema da dor inocente; os Provérbios, que impressiona pela modernidade desconcertante com que pôe em discussão o sentido da vida e do mundo; o Cântico dos Cânticos, maravilhoso poema simbólico do amor humano. Como vedes, são todos livros do Antigo Testamento. E o Novo? Sem dúvida, o Novo Testamento é mais conhecido, e os seus gêneros literários são menos diversificados. Porém, a beleza da leitura integral do Evangelho deve ser descoberta, assim como recomendo os Atos dos Apóstolos ou uma das Cartas.
                Caros amigos, para concluir, hoje gostaria de sugerir que conserveis ao vosso alcance, durante a temporada de verão, ou nos momentos de pausa, a Bíblia Sagrada, para a saborear de modo novo, lendo inteiramente alguns de seus livros, aqueles menos conhecidos e também os mais famosos, como os Evangelhos, mas numa leitura contínua. Assim, os momentos de descanso podem tornar-se, além de um enriquecimento cultural, inclusive um alimento para o espírito, capaz de nutrir o conhecimento de Deus e o diálogo com Ele, a oração. E esta parece ser uma bonita ocupação para as férias: pegar num livro da Bíblia, gozar assim de um pouco de descanso e, ao mesmo tempo, entrar no grande espaço de Palavra de Deus e aprofundar o nosso contato com o Eterno, precisamente como  finalidade do tempo livre que o Senhor nos concede.
L'osservature Romano, 06 de agosto de 2011