São Francisco de Assis

 CAPÍTULO 7

ASSALTADO POR LADRÕES, É JOGADO NA NEVE.
SERVIDOR DOS LEPROSOS

Vestido com uma roupa curta, ele que em outros tempos andara de escarlate, e cantando em francês através de um bosque, foi assaltado por ladrões. Perguntaram-lhe ferozmente quem era, e ele respondeu forte e confiante: “Sou um arauto do grande Rei! Que é que vocês têm com isso?” Bateram lhe e o jogaram numa fossa cheia de neve, dizendo: “Fica aí, pobre arauto de Deus”. 

Quando se afastaram, revirou-se na fossa e conseguiu sair, sacudindo a neve. Com alegria redobrada, começou a cantar em voz alta pelos bosques os louvores do Criador de tudo. Chegando a um mosteiro, passou muitos dias na cozinha como servente, vestido apenas com uma túnica vil, contentando-se com um pouco de caldo. Mas ninguém teve pena dele e não conseguiu sequer alguma roupa velha. 

Por isso, levado não pela raiva mas pela necessidade, saiu dali e foi para a cidade de Gúbio, onde conseguiu uma túnica com um de seus antigos amigos. Pouco tempo depois, quando a fama do homem de Deus cresceu e o seu nome se espalhou no meio do povo, o prior daquele mosteiro, lembrando-se do que fora feito para Francisco e se arrependendo, procurou-o e pediu-lhe perdão por amor de Deus em seu nome e no dos monges.

Depois disso, o amante de toda humildade transferiu-se para um leprosário. Vivia com os leprosos, servindo a todos por amor de Deus, com toda diligência. Lavava-lhes a podridão dos corpos e limpava até o pus de suas chagas, como escreveu em seu Testamento : “Como estivesse ainda em pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos, mas o Senhor me conduziu para o meio deles e eu tive misericórdia com eles”.

Esta visão lhe era de tal modo insuportável que, segundo suas próprias palavras, no tempo de sua vida mundana, tapava o nariz só ao ver suas cabanas a duas milhas de distância. Mas, como por graça e força do Altíssimo já tinha começado a pensar nas coisas santas e úteis, quando ainda vivia como secular, encontrou-se um dia com um leproso e, superando a si mesmo, aproximou-se e o beijou. A partir de então, foi ficando cada dia mais humilde até conseguir vencer a si mesmo, por misericórdia do Redentor.

Ajudava também os outros pobres, mesmo quando ainda era secular e seguia o espírito do mundo, estendendo sua mão misericordiosa para os que não tinham nada e mostrando compassivo afeto para com os aflitos. Houve um dia em que, contra o seu costume, porque era muito bem educado, tratou mal um pobre que lhe pedia esmola. Mas logo, arrependido, começou a dizer consigo mesmo que era grande ofensa e vergonha negar a quem estava pedindo no nome de tão grande Rei, o que quisesse. 

Prometeu a si mesmo que jamais negaria a quem lhe pedisse em nome de Deus o que estivesse ao seu alcance. E o cumpriu com muita diligência, até oferecer totalmente a si mesmo, fazendo-se antes um cumpridor que um mestre do Evangelho: dá a quem te pede e não te desvies daquele que te pedir emprestado.


Capítulo 6 - Como sua mãe o soltou e como se despiu diante do bispo de Assis 

 Aconteceu que seu pai precisou ausentar-se, pela urgência dos negócios, por algum tempo, deixando o homem de Deus preso no calabouço. A mãe, que ficou sozinha com ele em casa, e não aprovava o procedimento do marido, dirigiu-se ao filho com palavras ternas. 

Mas, vendo que não conseguia fazê-lo mudar de opinião, sentiu seu coração materno se enternecer e, soltando as correntes, deixou-o sair. Ele deu graças a Deus e voltou depressa para o lugar onde estivera antes. Provado pelas tentações, gozava agora de maior liberdade e, depois de tantas lutas, adquirira um ânimo mais sereno. 

As dificuldades lhe deram maior segurança, e começou a andar mais confiante e livre por toda parte. Nesse meio tempo, o pai estava de volta. Não o tendo encontrado, acumulando seus desatinos, armou uma gritaria com sua mulher. 

Depois, irado e ameaçador, correu em busca do filho, decidido a expulsá-lo da região, se não conseguisse traze-lo de volta. Mas, como o temor de Deus é o arrimo da confiança, logo que o filho da graça viu que seu pai carnal estava chegando, veio seguro, alegre e espontaneamente ao seu encontro, dizendo claramente que, para ele, cárceres e castigos não queriam dizer nada. Até garantiu que, por amor de Cristo, estava disposto a suportar com alegria todos os males.  

Vendo que não poderia afastá-lo do caminho em que se metera, o pai cuidou apenas de reaver o dinheiro.  O homem de Deus teria querido gastá-lo e oferecê-lo todo para o sustento dos pobres e na construção daquele lugar mas, como não lhe tinha amor, não podia sofrer decepção alguma, nem se perturbou com a perda de um bem a que não tinha apego. 

Quando achou o dinheiro que ele, desprezador por excelência dos bens terrenos, ávido demais das riquezas celestes, tinha jogado a uma janela como lixo, acalmou-se um bocado o furor do pai irado. A recuperação foi como um refrigério para sua sede de avareza. 

Mais tarde, apresentou-o ao bispo da cidade, para que, renunciando em suas mãos à herança, devolvesse tudo que tinha. Ele não se recusou. Até se apressou alegremente a fazer o que pediam.
Diante do bispo, não se demorou e nada o deteve: sem dizer nem esperar palavra, despiu e jogou suas roupas, devolvendo-as ao pai. Não guardou nem as calças: ficou completamente nu diante de todos. 

O bispo, compreendendo sua atitude e admirando muito seu fervor e constância, levantou-se prontamente e o acolheu em seus braços, envolvendo-o no manto. Compreendeu claramente que era uma disposição divina e percebeu que os gestos do homem de Deus, que estava presenciando, encerravam algum mistério. 

Tornou-se, desde então, seu protetor, animando-o, confortando-o e abraçando-o nas entranhas da caridade. É aqui que o nu luta com o adversário nu e, desprezando as coisas que são do mundo, aspira apenas à justiça de Deus.
Foi assim que Francisco tratou de desprezar a própria vida, deixando de lado toda solicitude mundana, para encontrar como um pobre a paz no caminho que lhe fora aberto: só a parede da carne separava-o ainda da visão celeste.
***
Conhecendo a vida de São Francisco de Assis
 Levantou-se sem vacilar, com alegria e presteza, ostentando o escudo da fé para combater pelo Senhor e munido com as armas de uma grande confiança. Tomou o caminho da cidade e, animado pelo entusiasmo divino, começou a acusar-se por sua demora e covardia. 
Vendo-o, todos os que o conheciam e confrontavam o presente com o passado passaram a insultá-lo miseravelmente, chamando-o de louco e demente, e lhe atiraram pedras e lama das praças.
Viam-no completamente transformado em seus hábitos anteriores e muito acabado pela mortificação, e atribuíam seu comportamento à fraqueza e à loucura. Mas, como a paciência vale mais que a arrogância, o servo de Deus se fazia surdo a tudo isso e, sem se ofender ou abater, dava graças a Deus por todas as coisas. Pois é em vão que o iníquo persegue quem busca a honestidade: quanto mais for ultrajado, maior sua vitória. O coração generoso, disse um autor, torna-se mais forte com o desprezo.

Mas o tumulto pelas praças e ruas da cidade durou tanto, ouvindo-se em toda parte o clamor dos que o insultavam, que, entre os muitos a cujos ouvidos chegou, estava também seu pai.
Ouvindo o nome do filho, e que estava sendo comprometido nesse tipo de conversa por seus concidadãos, levantou-se imediatamente, não para libertá-lo mas para perdê-lo.
Sem moderação alguma, partiu como um lobo para cima da ovelha e, olhando-o com truculência, arrastou-o com modos indignos e afrontosos para casa. 
 Sem qualquer compaixão, prendeu-o por muitos dias em um lugar escuro e, querendo dobrá-lo para seu modo de ver, agiu primeiro com palavras e depois com chicotadas e algemas. Com isso tudo, o próprio Francisco ficou ainda mais pronto e decidido a seguir seu santo propósito, e sem se convencer com as palavras, nem se cansar da cadeia, não perdeu a paciência.
Não são castigos e algemas que vão mudar a maneira correta de pensar e de agir, ou afastar do rebanho de Cristo aquele que aprendeu que deve se alegrar nas tribulações.
Não treme diante de um dilúvio de muitas águas quem, na hora do aperto, se refugia no Filho de Deus, o qual, para que nossas tribulações não nos pareçam insuportáveis, sempre mostra que já passou por coisas piores.

***


Capítulo 5 - Como seu pai, perseguindo-o, o prendeu


Enquanto o servo de Deus Altíssimo estava nesse lugar, seu pai, como um investigador aplicado buscava-o por todos os lados, querendo saber que fim levara o filho.

Quando entendeu como ele estava vivendo naquele local, teve o coração ferido de íntima dor, e ficou muito perturbado com a súbita mudança.
Convocou amigos e vizinhos e correu o mais depressa que pôde para onde morava o servo de Deus. Francisco, que era um atleta de Cristo ainda novato, sabendo das ameaças dos que o perseguiam e pressentindo sua chegada, não quis dar oportunidade à raiva e se meteu numa cova secreta que tinha preparado para isso.




Esteve um mês nesse esconderijo, que ficava na casa e talvez só fosse conhecido por um amigo, mal ousando sair para as necessidades. 
Comia algum alimento, quando o recebia, no fundo da cova. Todo auxílio lhe era levado em segredo. 

Banhado em lágrimas, rezava continuamente para que Deus o livrasse da mão dos que o perseguiam e, por um favor benigno, lhe permitisse cumprir seus piedosos propósitos. 

Jejuando e chorando, implorava a clemência do Salvador e, desconfiando da própria capacidade, punha em Deus todo o seu pensamento. 
Mesmo dentro do buraco e na escuridão, gozava de uma alegria indizível, que nunca tinha experimentado. Cheio de ardor, saiu do esconderijo e se apresentou às injúrias dos que o perseguiam.

***


Capítulo 4 - Como, tendo vendido tudo, desprezou o dinheiro recebido
 Quando chegou a hora estabelecida, o servo do Altíssimo, assim preparado e confirmado pelo Espírito Santo, seguiu o ímpeto sagrado do espírito, pelo qual se chega aos bens melhores, desprezando os que passam. 


De fato, nem podia esperar mais: uma doença mortal estendia por toda parte seus efeitos nefastos e paralisava tantas pessoas, que qualquer demora do médico podia ser fatal para elas. Levantou-se, armado do sinal da cruz e, tendo preparado um cavalo, montou e, levando consigo peças de escarlate para vender, partiu veloz para Foligno. Tendo lá vendido como de costume tudo que levara, o feliz mercador deixou até o cavalo que montara, depois de receber o preço que valia. De volta, livre da carga, vinha pensando com visão religiosa no que fazer com o dinheiro.




Admirável e repentinamente todo convertido para as coisas de Deus, achou que era pesado demais carregar aquela soma por uma hora que fosse. Considerando simples areia todo aquele pagamento, apressou-se em se desfazer dela. Vindo na direção de Assis, encontrou à beira do caminho uma igreja erguida havia muito tempo em honra de São Damião e agora ameaçando ruína por sua muita antiguidade.
          Chegando a ela, o novo soldado de Cristo, comovido pela piedade de tão urgente necessidade, entrou cheio de temor e de reverência. Encontrando lá um sacerdote pobre, beijou suas mãos consagradas cheio de fé, deu-lhe o dinheiro que levava e contou direitinho o que queria. Espantado, e admirando tão incrível e repentina conversão, o padre não quis acreditar. Achando que estava sendo enganado, não aceitou o dinheiro oferecido: poderíamos dizer que o tinha visto, um dia antes, vivendo regaladamente entre parentes e conhecidos e mostrando mais loucura que os outros. Mas o jovem insistia teimosamente, e com palavras ardentes procurava convencer o sacerdote que, pelo amor de Deus, lhe permitisse viver em sua companhia.
          Afinal o padre concordou em que ficasse, mas, por medo de seus pais, não recebeu o dinheiro, que Francisco, verdadeiro desprezador de todas as riquezas, jogou a uma janela, tratando-o como se fosse pó. Pois desejava possuir a sabedoria que é melhor do que o ouro e adquirir a prudência que é mais preciosa do que a prata (Prov 16,16).
(Primeira vida de São Francisco de Assis - Frei Tomás de Celano)


***

Capítulo 3 - Como, transformado interiormente, mas não exteriormente, falou alegoricamente de um tesouro encontrado e de uma noiva.

6.

Já mudado, mas só espiritual e não exteriormente, não quis mais ir para a Apúlia e procurou orientar sua vontade pela vontade de Deus. 

Por isso subtraiu-se aos poucos do bulício do mundo e dos negócios, querendo esconder Jesus Cristo em seu interior. 
Como um negociante prudente, escondeu aos olhos dos enganadores a pérola encontrada e, ocultamente, procurou vender tudo para poder adquiri-la. 

Tinha predileção por um jovem de Assis, porque era de sua idade e uma amizade plenamente compartilhada permitia contar-lhe seus segredos. Levava-o muitas vezes a lugares afastados e aptos para os seus planos, garantindo que tinha encontrado um tesouro precioso e enorme. 

Alegre e curioso e curioso pelo que ouvira, o amigo ia de boa vontade com ele todas as vezes que era chamado. Havia uma cripta perto da cidade, à qual iam com freqüência para falar do tesouro. O homem de Deus, já santificado pelo desejo de ser santo, entrava na cripta enquanto o companheiro ficava esperando do lado de fora e, tomado pelo novo e singular espírito, orava ao Pai na solidão. 

Esforçava-se para que ninguém soubesse o que fazia lá dentro, para que o segredo fosse causa de maior bem, e buscava só a Deus em seu santo propósito. Orava com devoção para que Deus eterno e verdadeiro dirigisse seu caminho e o ensinasse a cumprir sua vontade. 

Sustentava em sua alma uma luta violenta e não conseguia parar enquanto não realizasse o que tinha resolvido em seu coração. Pensamentos muito variados entrecruzavam-se nele, importunando-o e perturbando-o duramente. Ardia interiormente pela chama divina e não conseguia esconder o fervor de sua alma. Doía-lhe ter pecado tão gravemente e ofendido os olhos da majestade de Deus. 


As vaidades do passado ou do presente já não o agradavam, mas ainda não recebera plenamente a confiança de poder resistir-lhes no futuro. Por isso, quando voltava para junto do companheiro, estava tão cansado que nem parecia o mesmo que tinha entrado.




7.
Certo dia, tendo invocado mais plenamente a misericórdia divina, o Senhor lhe mostrou o que tinha que fazer. Ficou tão cheio de alegria, que não cabia mais em si e, mesmo sem querer, deixou escapar alguma coisa aos ouvidos dos outros. 

Mas embora não pudesse calar-se por ser tão grande o amor que lhe fora inspirado, era com cautela que comunicava alguma coisa, e falando em parábolas.
Assim como falara ao amigo íntimo de um tesouro escondido, como dissemos, aos outros procurava falar por analogias. Dizia que não queria ir para a Apúlia, mas prometia que haveria de fazer coisas nobres e estupendas em sua própria terra. 

Os outros acharam que ele ia se casar e perguntaram: “Você vai se casar, Francisco?”
Respondeu-lhes: “Vou me casar com uma noiva nobre e bonita como vocês nunca viram, que ganha das outras em beleza e supera a todas em sabedoria”. 


De fato, a esposa imaculada do Senhor era a verdadeira religião, que ele abraçara, e o tesouro escondido era o reino dos céus, que buscou com tanto entusiasmo. Pois era necessário que se cumprisse plenamente a vocação evangélica naquele que haveria de ser ministro fiel e autêntico do Evangelho. 



2 comentários:

  1. olá,
    que a paz do eterno amor esteja com todos vocês...

    gostaria de saber de que arvore são francisco de assis retirava parte do galho para fabricar a lerta T que compõe seu colar...

    é porque ouvi um amigo meu falr disso a muitos anos atrás , e esqueci...
    esse amigo , eu perdi contato , mas era um frade muito gente boa... ,enfim...
    se puderem me ajudar...
    obrigado ,

    felipe .

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    1. Caro irmão, grato por sua participação.
      Não temos nas fontes que usamos para nossa formação de franciscanismo qualquer informação sobre essa madeira. O que sabemos é que ele firmava seus escritos com o Tau, para significar sua pertença total a Deus.
      Paz e Bem.

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