Crer na caridade suscita caridade
Mensagem de Bento XVI para a Quaresma
de 2013
Cidade do Vaticano,
01 de Fevereiro de 2013 (Zenit.org). | 560 visitas
«Nós conhecemos o
amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1 Jo4, 16)
Queridos irmãos e irmãs!
A celebração da
Quaresma, no contexto do Ano
da fé, proporciona-nos uma preciosa ocasião para meditar sobre a relação
entre fé e caridade: entre o crer em Deus, no Deus de Jesus Cristo, e o amor,
que é fruto da acção do Espírito Santo e nos guia por um caminho de dedicação a
Deus e aos outros.
1. A fé como resposta ao amor de Deus
Na minha
primeira Encíclica, deixei já alguns elementos que permitem individuar a estreita ligação
entre estas duas virtudes teologais: a fé e a caridade. Partindo duma afirmação
fundamental do apóstolo João: «Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois
cremos nele» (1 Jo 4, 16), recordava
que, «no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia,
mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo
horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. (...) Dado que Deus foi o primeiro a
amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora
o amor já não é apenas um “mandamento”, mas é a resposta ao dom do amor com que
Deus vem ao nosso encontro» (Deus
caritas est, 1). A fé constitui
aquela adesão pessoal - que engloba todas as nossas faculdades - à revelação do
amor gratuito e «apaixonado» que Deus tem por nós e que se manifesta plenamente
em Jesus Cristo. O encontro com Deus Amor envolve não só o coração, mas também
o intelecto: «O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim
da nossa vontade à d’Ele une intelecto, vontade e sentimento no acto
globalizante do amor. Mas isto é um processo que permanece continuamente a
caminho: o amor nunca está "concluído" e completado» (ibid., 17). Daqui deriva, para todos os cristãos e em particular para os
«agentes da caridade», a necessidade da fé, daquele «encontro com Deus em
Cristo que suscite neles o amor e abra o seu íntimo ao outro, de tal modo que,
para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto
de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo
amor» (ibid., 31). O cristão é uma pessoa conquistada pelo amor de Cristo e,
movido por este amor - «caritas Christi urget nos» (2 Cor 5, 14) - , está aberto de modo profundo e concreto ao amor do próximo
(cf. ibid., 33). Esta
atitude nasce, antes de tudo, da consciência de ser amados, perdoados e mesmo
servidos pelo Senhor, que Se inclina para lavar os pés dos Apóstolos e Se
oferece a Si mesmo na cruz para atrair a humanidade ao amor de Deus.
«A fé mostra-nos o
Deus que entregou o seu Filho por nós e assim gera em nós a certeza vitoriosa
de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! (...) A fé, que toma consciência do
amor de Deus revelado no coração trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua
vez o amor. Aquele amor divino é a luz – fundamentalmente, a única - que
ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir»
(ibid., 39). Tudo isto nos faz compreender
como o procedimento principal que distingue os cristãos é precisamente «o amor
fundado sobre a fé e por ela plasmado» (ibid., 7).
2. A caridade como vida na fé
Toda a vida cristã
consiste em responder ao amor de Deus. A primeira resposta é precisamente a fé
como acolhimento, cheio de admiração e gratidão, de uma iniciativa divina
inaudita que nos precede e solicita; e o «sim» da fé assinala o início de uma
luminosa história de amizade com o Senhor, que enche e dá sentido pleno a toda
a nossa vida. Mas Deus não se contenta com o nosso acolhimento do seu amor
gratuito; não Se limita a amar-nos, mas quer atrair-nos a Si, transformar-nos
de modo tão profundo que nos leve a dizer, como São Paulo: Já não sou eu que
vivo, é Cristo que vive em mim (cf. Gl 2, 20).
Quando damos espaço
ao amor de Deus, tornamo-nos semelhantes a Ele, participantes da sua própria caridade.
Abrirmo-nos ao seu amor significa deixar que Ele viva em nós e nos leve a amar
com Ele, n'Ele e como Ele; só então a nossa fé se torna verdadeiramente uma «fé
que actua pelo amor» (Gl 5, 6) e Ele vem
habitar em nós (cf. 1 Jo 4, 12).
A fé é conhecer a
verdade e aderir a ela (cf. 1 Tm 2, 4); a caridade é
«caminhar» na verdade (cf.Ef 4, 15). Pela fé,
entra-se na amizade com o Senhor; pela caridade, vive-se e cultiva-se esta
amizade (cf. Jo 15, 14-15). A fé
faz-nos acolher o mandamento do nosso Mestre e Senhor; a caridade dá-nos a
felicidade de pô-lo em prática (cf. Jo 13, 13-17). Na fé,
somos gerados como filhos de Deus (cf. Jo 1, 12-13); a caridade faz-nos perseverar na filiação divina de modo
concreto, produzindo o fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5, 22). A fé faz-nos reconhecer os dons que o Deus bom e generoso nos
confia; a caridade fá-los frutificar (cf. Mt 25, 14-30).
3. O entrelaçamento indissolúvel de fé e caridade
À luz de quanto foi
dito, torna-se claro que nunca podemos separar e menos ainda contrapor fé e
caridade. Estas duas virtudes teologais estão intimamente unidas, e seria
errado ver entre elas um contraste ou uma «dialéctica». Na realidade, se, por
um lado, é redutiva a posição de quem acentua de tal maneira o carácter
prioritário e decisivo da fé que acaba por subestimar ou quase desprezar as
obras concretas da caridade reduzindo-a a um genérico humanitarismo, por outro
é igualmente redutivo defender uma exagerada supremacia da caridade e sua
operatividade, pensando que as obras substituem a fé. Para uma vida espiritual
sã, é necessário evitar tanto o fideísmo como o activismo moralista.
A existência cristã
consiste num contínuo subir ao monte do encontro com Deus e depois voltar a
descer, trazendo o amor e a força que daí derivam, para servir os nossos irmãos
e irmãs com o próprio amor de Deus. Na Sagrada Escritura, vemos como o zelo dos
Apóstolos pelo anúncio do Evangelho, que suscita a fé, está estreitamente
ligado com a amorosa solicitude pelo serviço dos pobres (cf. At 6, 1-4). Na Igreja, devem coexistir e integrar-se contemplação e acção,
de certa forma simbolizadas nas figuras evangélicas das irmãs Maria e Marta
(cf. Lc 10, 38-42). A
prioridade cabe sempre à relação com Deus, e a verdadeira partilha evangélica
deve radicar-se na fé (cf. Catequese
na Audiência geral de 25
de Abril de 2012). De facto, por vezes tende-se a circunscrever a palavra «caridade» à
solidariedade ou à mera ajuda humanitária; é importante recordar, ao invés, que
a maior obra de caridade é precisamente a evangelização, ou seja, o «serviço da
Palavra». Não há acção mais benéfica e, por conseguinte, caritativa com o
próximo do que repartir-lhe o pão da Palavra de Deus, fazê-lo participante da
Boa Nova do Evangelho, introduzi-lo no relacionamento com Deus: a evangelização
é a promoção mais alta e integral da pessoa humana. Como escreveu o Servo de
Deus Papa Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio, o anúncio de Cristo
é o primeiro e principal factor de desenvolvimento (cf. n. 16). A verdade
primordial do amor de Deus por nós, vivida e anunciada, é que abre a nossa
existência ao acolhimento deste amor e torna possível o desenvolvimento
integral da humanidade e de cada homem (cf. Enc. Caritas in veritate, 8).
Essencialmente,
tudo parte do Amor e tende para o Amor. O amor gratuito de Deus é-nos dado a
conhecer por meio do anúncio do Evangelho. Se o acolhermos com fé, recebemos
aquele primeiro e indispensável contacto com o divino que é capaz de nos fazer
«enamorar do Amor», para depois habitar e crescer neste Amor e comunicá-lo com
alegria aos outros.
A propósito da
relação entre fé e obras de caridade, há um texto na Carta de São Paulo aos Efésios que a resume talvez do melhor modo:
«É pela graça que estais salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós; é dom
de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie. Porque nós fomos feitos
por Ele, criados em Cristo Jesus, para vivermos na prática das boas acções que
Deus de antemão preparou para nelas caminharmos» (2, 8-10). Daqui se deduz que
toda a iniciativa salvífica vem de Deus, da sua graça, do seu perdão acolhido
na fé; mas tal iniciativa, longe de limitar a nossa liberdade e
responsabilidade, torna-as mais autênticas e orienta-as para as obras da
caridade. Estas não são fruto principalmente do esforço humano, de que
vangloriar-se, mas nascem da própria fé, brotam da graça que Deus oferece em
abundância. Uma fé sem obras é como uma árvore sem frutos: estas duas virtudes
implicam-se mutuamente. A Quaresma, com as indicações que dá tradicionalmente
para a vida cristã, convida-nos precisamente a alimentar a fé com uma escuta
mais atenta e prolongada da Palavra de Deus e a participação nos Sacramentos e,
ao mesmo tempo, a crescer na caridade, no amor a Deus e ao próximo,
nomeadamente através do jejum, da penitência e da esmola.
4. Prioridade da fé, primazia da caridade
Como todo o dom de
Deus, a fé e a caridade remetem para a acção do mesmo e único Espírito Santo
(cf. 1 Cor 13), aquele
Espírito que em nós clama:«Abbá! – Pai!» (Gl 4, 6), e que nos faz dizer: «Jesus é Senhor!» (1 Cor 12, 3) e «Maranatha! – Vem, Senhor!» (1 Cor 16, 22; Ap 22, 20).
Enquanto dom e
resposta, a fé faz-nos conhecer a verdade de Cristo como Amor encarnado e
crucificado, adesão plena e perfeita à vontade do Pai e infinita misericórdia
divina para com o próximo; a fé radica no coração e na mente a firme convicção
de que precisamente este Amor é a única realidade vitoriosa sobre o mal e a
morte. A fé convida-nos a olhar o futuro com a virtude da esperança, na
expectativa confiante de que a vitória do amor de Cristo chegue à sua
plenitude. Por sua vez, a caridade faz-nos entrar no amor de Deus manifestado
em Cristo, faz-nos aderir de modo pessoal e existencial à doação total e sem
reservas de Jesus ao Pai e aos irmãos. Infundindo em nós a caridade, o Espírito
Santo torna-nos participantes da dedicação própria de Jesus: filial em relação
a Deus e fraterna em relação a cada ser humano (cf. Rm 5, 5).
A relação entre
estas duas virtudes é análoga à que existe entre dois sacramentos fundamentais
da Igreja: o Baptismo e a Eucaristia. O Baptismo (sacramentum fidei) precede a Eucaristia (sacramentum caritatis), mas está orientado para ela, que
constitui a plenitude do caminho cristão. De maneira análoga, a fé precede a
caridade, mas só se revela genuína se for coroada por ela. Tudo inicia do
acolhimento humilde da fé («saber-se amado por Deus»), mas deve chegar à
verdade da caridade («saber amar a Deus e ao próximo»), que permanece para
sempre, como coroamento de todas as virtudes (cf. 1 Cor 13, 13).
Caríssimos irmãos e
irmãs, neste tempo de Quaresma, em que nos preparamos para celebrar o evento da
Cruz e da Ressurreição, no qual o Amor de Deus redimiu o mundo e iluminou a
história, desejo a todos vós que vivais este tempo precioso reavivando a fé em
Jesus Cristo, para entrar no seu próprio circuito de amor ao Pai e a cada irmão
e irmã que encontramos na nossa vida. Por isto elevo a minha oração a Deus,
enquanto invoco sobre cada um e sobre cada comunidade a Bênção do Senhor!
Vaticano, 15 de Outubro de 2012
BENEDICTUS PP. XVI
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***
O Papa: liturgia “não pode ser idealizada ou modificada pela comunidade individual ou por especialistas”.
A cada dia deve crescer em nós a convicção de que a liturgia não é um nosso, um meu “fazer”, mas é ação de Deus em nós e conosco.
Assim, não é o indivíduo – sacerdotes ou fiel – ou o grupo que celebra a liturgia, mas essa é primeiramente ação de Deus através da Igreja, que tem sua história, a sua rica tradição e a sua criatividade. Essa universalidade e abertura fundamental, que é própria de toda a liturgia, é uma das razões pelas quais essa não pode ser idealizada ou modificada pela comunidade individual ou por especialistas, mas deve ser fiel às formas da Igreja universal.
Também na liturgia da menor comunidade
está sempre presente a Igreja inteira. Por isso não existem
“estrangeiros” na comunidade litúrgica. Em cada celebração litúrgica
participa junto toda a Igreja, céu e terra, Deus e os homens. A liturgia
cristã também se celebra em um lugar e em um espaço concreto e expressa
o “sim” de uma determinada comunidade, por sua natureza católica,
provém de todos e conduz a todos, em unidade com o Papa, com os Bispos, com os crentes de todas as épocas e de todos os lugares. Quanto mais uma celebração é animada por esta consciência, mais frutuosamente se realiza nela o sentido autêntico da liturgia.
Caros amigos, a Igreja torna-se visível
de vários modos: na ação caritativa, nos projetos de missão, no
apostolado pessoal que cada cristão deve realizar no próprio ambiente.
No entanto, o lugar no qual a Igreja é experimentada plenamente é na liturgia:
essa é o ato no qual acreditamos que Deus entra na nossa realidade e
nós podemos encontrá-Lo, podemos tocá-Lo. É o ato no qual entramos em
contato com Deus: Ele vem a nós, e nós somos iluminados por Ele. Por
isso, quando nas reflexões sobre liturgia nós centramos a nossa
atenção somente sobre como torná-la atraente, interessante, bonita,
corremos o risco de esquecer o essencial: a liturgia se celebra por Deus
e não por nós mesmos; é obra sua; é Ele o sujeito; e nós devemos nos
abrir a Ele e nos deixar guiar por Ele e pelo seu Corpo que é a Igreja.
Da catequese do Santo Padre, o Papa Bento XVI, sobre a oração litúrgica – 3 de outubro de 2012.
Angelus de Bento XVI em Castel Gandolfo
São Francisco e São Boaventura |
Queridos irmãos e irmãs!
No calendário litúrgico o dia 15 de
julho faz memória a São Boaventura de Bagnoregio, franciscano, doutor da
Igreja, sucessor de São Francisco de Assis na condução da Ordem dos Frades Menores.
Ele escreveu a primeira biografia
oficial do Poverell’, e no final da vida foi Bispo desta Diocese de
Albano. Numa carta, Boaventura escreve: “Confesso diante de Deus que a razão
que mais me fez amar a vida do beato Francisco é que ela se assemelha ao início
e ao crescimento da Igreja”(Epistula
de tribus quaestionibus, na Obra de São Boaventura, Introdução
Geral, Roma 1990, p.29).
Estas palavras nos remetem diretamente
ao Evangelho deste domingo, que apresenta o primeiro envio em missão dos Doze
Apóstolos por parte de Jesus “Chamou a si os doze, e começou a enviá-los a dois
e dois, e deu-lhes poder sobre os espíritos imundos; e ordenou-lhes que nada tomassem para o
caminho, senão somente um bordão; nem alforje, nem pão, nem dinheiro no cinto; mas que calçassem alparcas, e que não vestissem duas túnicas. (Mc 6, 7-9). Francisco de Assis, depois de sua
conversão, praticou ao ‘pé da letra’ este Evangelho, tornando-se uma
fidelíssima testemunha de Jesus ; e associado de maneira singular ao mistério
da Cruz, foi transformado num ‘outro Cristo’, como o próprio São Boaventura o
apresente.”.
Toda a vida de São Boaventura, assim
como sua teologia têm como centro inspirador Jesus Cristo. Esta centralidade de
Cristo reencontramos na segunda Leitura da Missa de hoje (Ef 1, 3-14), o
célebre hino da Carta de São Paulo aos Efésios, que inicia assim: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as
bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo”. apóstolo mostra então
como se realizou este designo em quatro passagens que começam com a mesma
expressão ‘Nele’, referindo à Jesus Cristo. ‘Nele’ o Pai nos escolheu antes da
fundação do mundo; ‘Nele’ fomos redimidos mediante o seu sangue; ‘Nele’ nos
tornamo herdeiros, predestinados a ser ‘louvor de sua glória’; ‘Nele’aqueles
que crêem no Evangelho recebem o sigilo do Espírito Santo.
Este hino paulino contém a visão da
história que São Boaventura contribuiu para difundir na Igreja: toda a história
tem como centro Cristo, o qual assegura também novidade e renovação a todo
tempo. Em Jesus, Deus disse e deu tudo, mas como Ele é um tesouro inexorável, o
Espírito Santo jamais deixa de revelar e de atualizar o seu mistério. Por isso
a obra de Cristo e da Igreja jamais regride, mas sempre progride.
Querido amigos, invoquemos Maria
Santíssima, que celebramos amanhã como Virgem do Monte Carmelo, para que nos
ajude, como São Francisco e São Boaventura, a responder generosamente a chamada
do Senhor, para anunciar o seu Evangelho de salvação com as palavras e antes de
tudo com a vida.
***
A oração é o encontro com uma Pessoa viva
A catequese do Papa na Audiência desta quarta-feira
CIDADE DO VATICANO, quarta-feira, 30 de maio de 2012 (ZENIT.org)
Apresentamos as palavras de Bento XVI aos fiéis e peregrinos reunidos
para a Audiência Geral desta quarta-feira, na praça de São Pedro.
Queridos irmãos e irmãs,
Nestas catequeses estamos meditando a oração nas cartas de São Paulo e
buscamos ver a oração cristã como um verdadeiro e pessoal encontro com
Deus Pai, em Cristo, mediante o Espírito Santo. Hoje, neste encontro,
entram em diálogo o “sim” fiel de Deus e o “amém” confiante dos
crentes. E gostaria de destacar esta dinâmica, detendo-me na Segunda
Carta aos Coríntios. São Paulo envia esta apaixonada Carta a uma Igreja
que mais de uma vez colocou em discussão seu apostolado, e ele abre o
seu coração pare que os destinatários sejam assegurados sobre a
fidelidade a Cristo e ao Evangelho. Esta Segunda Carta aos Coríntios
inicia com uma das orações de benção mais altas do Novo Testamento. Soa
assim: “Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das
Misericórdias, Deus de toda a consolação, que nos conforta em todas as
nossas tribulações, para que, pela consolação com que nós mesmos somos
consolados por Deus, possamos consolar os que estão em qualquer
angustia!” (2Cor 1,3-4).
Então, Paulo vive em grande tribulação, são muitas as dificuldades e
as aflições que teve que atravessar, mas nunca cedeu ao desânimo,
sustentado pela graça e pela proximidade com o Senhor Jesus Cristo, pelo
qual se tornou apóstolo e testemunha da entrega de toda própria
existência em Suas mãos. Justamente por isso, Paulo inicia esta Carta
com uma oração de benção e de agradecimento a Deus, porque não houve
momento algum de sua vida de apóstolo de Cristo no qual tenha sentido
menos sustentado pelo Pai misericordioso, pelo Deus de toda
consolação. Sofreu terrivelmente, disse ele mesmo nesta Carta, mas em
todas aquelas situações, onde parecia não abrir-se outra estrada,
recebeu consolação e conforto de Deus. Para anunciar Cristo, logo
também sofreu perseguições, até ser trancado na prisão, mas se sentiu
sempre interiormente livre, animado pela presença de Cristo e ansioso
para anunciar a palavra de esperança do Evangelho. Da prisão, assim
escreve a Timóteo, seu fiel colaborador. Ele da cadeia
escreve: “A palavra de Deus, esta não se deixa acorrentar. Pelo que tudo
suporta por amor dos escolhidos, para que também eles consigam a
salvação em Jesus Cristo, com a glória eterna” (2Tm 2,9b-10).
Em seu sofrimento por Cristo, ele experimenta a consolação de Deus.
Escreve: “à medida que em nós crescem os sofrimentos de Cristo, crescem
também por Cristo as nossas consolações” (2Cor 1,5).
Na oração de benção que introduz a Segunda Carta aos Coríntios
predomina , ao lado do tema das aflições, o tema da consolação, não
interpretado somente como um simples conforto, mas, sobretudo, como
encorajamento e exortação para não deixar-se vencer pela tribulação e
pela dificuldade. O convite é para viver cada situação unidos a Cristo,
que carrega sobre si todo sofrimento e pecado do mundo para levar luz,
esperança e redenção. E assim, Jesus nos torna capazes de consolar
aqueles que estão à nossa volta e que se encontram em tqualquer tipo de
aflição. A profunda união com Cristo na oração, a confiança em sua
presença, conduzem à disponibilidade de partilhar os sofrimentos e as
aflições dos irmãos. Escreve Paulo: “Quem é fraco, que eu não seja
fraco? Quem sofre escândalo, que eu não me consuma de dor?” (2Cor
11,29). Estas partilhas não nascem de uma simples benevolência, nem
mesmo da generosidade humana ou do espírito de altruísmo, mas surge do
consolo do Senhor, do sustento inabalável da “extraordinária potência
que vem de Deus e não de nós” (2Cor 4,7).
Queridos irmãos e irmãs, a nossa vida e o nosso caminho cristão são
marcados muitas vezes pela dificuldade, incompreensão e sofrimento.
Todos nós sabemos. No relacionamento fiel com o Senhor, em nossa oração
constante, cotidiana, podemos também nós, concretamente, sentir a
consolação que vem de Deus. E isso reforça a nossa fé, pois nos faz
experimentar de modo concreto o “sim” de Deus ao homem, a nós, a mim, em
Cristo; faz sentir a fidelidade do Seu amor, que chega até a doação de
Seu Filho sobre a Cruz. Afirma São Paulo: “O Filho de Deus, Jesus
Cristo, que nós, Silvano, Timóteo e eu, vos temos anunciado não foi
‘sim’ e depois ‘não’, mas sempre foi ‘sim’. Porque todas as promessas de
Deus são ‘sim’ em Jesus. Por isso, é por ele que nós dizemos ‘Amém’ à
glória de Deus” (2Cor 1,19-20). O “sim” de Deus não é reduzido pela
metade, não está entre o “sim” e o “não”, mas é um simples e seguro
“sim”. E a este “sim” nós respondemos com o nosso “sim”, com o nosso
“amém” e, assim, estamos seguros no “sim” de Deus.
A fé não é primariamente uma ação humana, mas dom gratuito de Deus,
que se enraíza na sua fidelidade, no seu “sim”, que nos faz compreender
como viver a nossa existência amando Ele e os irmãos. Toda a história de
salvação é um progressivo revelar-se desta fidelidade de Deus, apesar
das nossas infidelidades e nossas negações, na certeza de que “os dons e
o chamado de Deus são irrevogáveis”, como declara o Apóstolo na Carta aos Romanos (11,29).
Queridos irmãos e irmãs, o modo de agir de Deus – bem diferente do
nosso – nos dá consolação, força e esperança, porque Deus não retira o
seu “sim”.Diante dos conflitos nas relações humanas, às vezes também
familiares, nós somos levados a perseverar no amor gratuito, que requer
empenho e sacrifício. Em vez disso, Deus não se cansa de nós, não se
cansa nunca de ter paciência conosco e com sua imensa misericórdia nos
precede sempre, vem ao nosso encontro por primeiro, é absolutamente
confiável este seu “sim”. Na Cruz nos ofereçe a medida do seu amor, que
não se calcula, não tem tamanho.São Paulo, na Carta a Tito escreve: “Mas
um dia apareceu a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para
com os homens” (Tit 3,4). E por isso, este “sim” se renova a cada dia
“quem nos confirma a nós e a vós em Cristo, e nos consagrou, é Deus. Ele
nos marcou com o seu selo e deu aos nossos corações o penhor do
Espírito” (2Cor 1,21b-22).
É, de fato, o Espírito Santo que torna constantemente presente e vivo
o “sim” de Deus em Jesus Cristoe cria em nosso coração o desejo de
segui-lo para entrar totalmente, um dia, no seu amor, quando receberemos
uma moradia não construída por mãos humanas nos Céus. Não existe alguém
que não seja alcançado ou convidado a este amor fiel, capaz de esperar,
mesmo aqueles que continuamente respondem com o “não” de rejeição ou de
coração endurecido. Deus nos espera, nos busca sempre, quer acolher-nos
na comunhão consigo para doar a cada um de nós a plenitude de vida, de
esperança e de paz.
Sobre o “sim” fiel de Deus, é unido o “amém” da Igreja que ressoa em cada ação da liturgia: “Amém” é a resposta da fé que conclui sempre a nossa oração pessoal e comunitária. E que expressa o nosso “sim” à iniciativa de Deus. Geralmente, respondemos por hábito com o nosso “Amém” na oração, sem compreender seu significado profundo. Este termo deriva do ‘aman’ que, em hebraico e em aramaico, significa “estabilizar”, “consolidar” e, consequentemente, “estar certo”, “dizer a verdade”. Se olharamos na Sagrada Escritura, vemos que este “amém” é dito no fim dos Salmos de benção e louvor, como por exemplo, no Salmo 41: “Vós, porém, me conservareis incólume, e na vossa presença me poreis para sempre. Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, de eternidade em eternidade! Assim seja! Amém!” (vv. 13-14). Ou expressa adesão a Deus, no momento em que o povo de Israel retorna cheio de alegria do exílio babilônico e diz o seu “sim”, o seu “amém” a Deus e a sua Lei. No Livro de Neemias se narra que, depois deste retorno, “Esdras abriu o livro (da Lei) à vista do povo todo; ele estava, com efeito, elevado acima da multidão. Quando o escriba abriu o livro, todo povo levantou-se. Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus; ao que todo o povo respondeu levantando as mãos: ‘Amém! Amém!’”(Nee 8,5-6).
Sobre o “sim” fiel de Deus, é unido o “amém” da Igreja que ressoa em cada ação da liturgia: “Amém” é a resposta da fé que conclui sempre a nossa oração pessoal e comunitária. E que expressa o nosso “sim” à iniciativa de Deus. Geralmente, respondemos por hábito com o nosso “Amém” na oração, sem compreender seu significado profundo. Este termo deriva do ‘aman’ que, em hebraico e em aramaico, significa “estabilizar”, “consolidar” e, consequentemente, “estar certo”, “dizer a verdade”. Se olharamos na Sagrada Escritura, vemos que este “amém” é dito no fim dos Salmos de benção e louvor, como por exemplo, no Salmo 41: “Vós, porém, me conservareis incólume, e na vossa presença me poreis para sempre. Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, de eternidade em eternidade! Assim seja! Amém!” (vv. 13-14). Ou expressa adesão a Deus, no momento em que o povo de Israel retorna cheio de alegria do exílio babilônico e diz o seu “sim”, o seu “amém” a Deus e a sua Lei. No Livro de Neemias se narra que, depois deste retorno, “Esdras abriu o livro (da Lei) à vista do povo todo; ele estava, com efeito, elevado acima da multidão. Quando o escriba abriu o livro, todo povo levantou-se. Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus; ao que todo o povo respondeu levantando as mãos: ‘Amém! Amém!’”(Nee 8,5-6).
Desde o início, portanto, o “amém” da liturgia judaica tornou-se o
“amém” das primeiras comunidades cristãs. E o livro da liturgia cristã
por excelência, o Apocalipse de São João, inicia com o “amém” da Igreja:
“Àquele que nos ama, que nos lavou de nossos pecados no seu sangue e
que fez de nós um reino de sacerdotes para Deus e seu Pai, glória e
poder pelos séculos e séculos! Amém” (Apo 1,5b-6). Assim no primeiro
capítulo do Apocalipse. E o mesmo livro é concluído com a invocação
“Amém. Vem, Senhor Jesus!” (Apo 22,21).
Queridos amigos, a oração é o encontro com uma Pessoa viva a se
escutar e com quem dialogar; é o encontro com Deus que renova sua
fidelidade inabalável, o seu “sim” ao homem, a cada um de nós, para
doar-nos a sua consolação em meio às tempestades da vida e nos fazer
viver, unidos a Ele, uma existência plena de alegria e de bem, que
encontrará o seu cumprimento na vida eterna.
Em nossa oração, somos chamados a dizer “sim” a Deus, a responder com
este “amém” de adesão, de fidelidade a Ele por toda nossa vida. Esta
fidelidade não podemos jamais conquistar com as nossas forças, mas é
fruto do nosso compromisso cotidiano; essa vem de Deus e é fundada sobre
o “sim” de Cristo, que afirma: Meu alimento é fazer a vontade do Pai
(cfr João 4,34). É neste "sim" que devemos entrar, entrar neste “sim”
de Cristo, na adesão à vontade de Deus, para conseguir
como São Paulo dizer que não somos mais nós que vivemos, mas é o próprio
Cristo que vive em nós. Então, o “amém” da nossa oração pessoal e
comunitária envolverá e transformará toda a nossa vida, uma vida de
consolação de Deus, uma vida imersa no Amor eterno e
inabalável. Obrigado.
CIDADE DO VATICANO, domingo, 15 de janeiro de 2012 (ZENIT.org) - Apresentamos as palavras de Bento XVI pronunciadas neste II Domingo do Tempo Comum, aos fiéis e peregrinos presentes na Praça de São Pedro para a oração do Angelus.
***
Queridos irmãos e irmãs!
Nas leituras bíblicas deste domingo – o segundo do Tempo Comum - emerge o tema da vocação: no Evangelho é o chamado dos primeiros discípulos por Jesus; na primeira leitura é o chamado do profeta Samuel. Em ambas as narrações, se destaca a importância da figura de quem faz o papel de mediador, ajudando as pessoas chamadas a reconhecer a voz de Deus e a segui-la.
No caso de Samuel, se trata de Eli, sacerdote do templo de Shiloh, onde era guardada antigamente a arca da aliança, antes de ser transportada para Jerusalém. Uma noite Samuel, que era ainda um garoto e desde pequeno vivia a serviço do templo, por três vezes seguidas escutou ao chamado no seu sono e foi a Eli. Mas não era ele que o chamava. Na terceira vez Eli compreendeu, e disse a Samuel: Se te chamarem novamente, responda: “Fala-me, Senhor, porque teu servo te escuta" (1 Sam 3,9). E assim foi, e daquele momento em diante Samuel aprendeu a reconhecer a palavra de Deus e se tornou seu fiel profeta.
No caso dos discípulos de Jesus, a figura mediadora é a de João Batista. Efetivamente, João tinha um vasto número de discípulos, e entre eles, dois pares de irmãos: Simão e André, João e Tiago, pescadores da Galiléia. Exatamente a dois desses, Batista indicou Jesus, no dia seguinte do seu batismo, no rio Jordão. Indicou-o dizendo: "Eis o cordeiro de Deus!" (Jo 1,36), que quer dizer: Eis o Messias. E aqueles dois seguiram Jesus, permaneceram durante muito tempo com Ele e se convenceram que realmente era o Cristo. Assim disseram aos outros, e assim foi formado o primeiro núcleo do que viria a ser o colégio dos Apóstolos.
Sob a luz desses dois textos, gostaria de destacar o papel decisivo do guia espiritual no caminho da fé e, particularmente, na resposta à vocação de especial consagração a serviço de Deus e de seu povo. A própria fé cristã, por si mesma, pressupõe o anuncio e o testemunho: de fato essa consiste na adesão à boa nova de que Jesus de Nazaré morreu e ressuscitou, e que é Deus. E assim também ao chamado a seguir Jesus de perto, renunciando a formar uma família própria para dedicar-se à grande família da Igreja, passa normalmente através do testemunho e da proposta de um "irmão maior", geralmente um sacerdote. Isso, sem se esquecer do papel fundamental dos pais, que com uma fé genuína e alegre e o amor conjugal, mostram aos filhos que é belo e possível construir toda a sua vida sobre o amor de Deus.
Queridos amigos, rezemos à Virgem Maria por todos os educadores, especialmente pelos sacerdotes e pelos pais, para que tenham consciência da importância do papel espiritual, em favorecer aos jovens, além do crescimento humano, a reposta ao chamado de Deus, a dizer: "Fala, Senhor, o teu servo te escuta".
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CIDADE DO VATICANO, domingo, 25 de dezembro de 2011 (zenit.org)
Apresentamos a seguir o texto integral da homilia pronunciada no sábado de noite na Basílica Vaticana por Bento XVI durante a Missa da Solenidade do Natal do Senhor 2011.
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Amados irmãos e irmãs!
A leitura que ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa solenemente com a palavra «apparuit», que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: «apparuit – manifestou-se». Esta é uma palavra programática, escolhida pela Igreja para exprimir, resumidamente, a essência do Natal. Antes, os homens tinham falado e criado imagens humanas de Deus, das mais variadas formas; o próprio Deus falara de diversos modos aos homens (cf. Heb 1, 1: leitura da Missa do Dia). Agora, porém, aconteceu algo mais: Ele manifestou-Se, mostrou-Se, saiu da luz inacessível em que habita. Ele, em pessoa, veio para o meio de nós. Na Igreja antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus manifestou-Se. Já não é apenas uma ideia, nem algo que se há-de intuir a partir das palavras. Ele «manifestou-Se». Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou? Ele verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora: «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens» (Tt 3, 4). Para os homens do tempo pré-cristão – que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o próprio Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também cruel e arbitrário –, esta era uma verdadeira «epifania», a grande luz que se nos manifestou: Deus é pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo reconhecer a Deus na fé, se interrogam se a Força última que segura e sustenta o mundo seja verdadeiramente boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e primordial como o bem e a beleza que, por breves instantes luminosos, se nos deparam no nosso cosmos. «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens»: eis a certeza nova e consoladora que nos é dada no Natal.
Na primeira das três leituras desta Missa de Natal, a liturgia cita um texto tirado do livro do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda mais concreta, a epifania que se verificou no Natal: «Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi concedido. Tem o poder sobre os ombros, e dão-lhe o seguinte nome: “Conselheiro admirável! Deus valoroso! Pai para sempre! Príncipe da Paz!” O poder será engrandecido numa paz sem fim» (Is 9, 5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tenha em mente um menino concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível. Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser humano, se diz: o seu nome será Deus valoroso, Pai para sempre. Estamos perante uma visão que se estende muito para além daquele momento histórico apontando para algo misterioso, colocado no futuro. Um menino, em toda a sua fragilidade, é Deus valoroso; um menino, em toda a sua indigência e dependência, é Pai para sempre. E isto «numa paz sem fim». Antes, o profeta falara duma espécie de «grande luz» e, a propósito da paz dimanada d’Ele, afirmara que o bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste manchada de sangue seriam lançados ao fogo (cf. Is 9, 1.3-4).
Deus manifestou-Se… como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda a violência e traz uma mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está continuamente ameaçado pela violência em tantos lugares e de muitos modos, em que não cessam de reaparecer bastões do opressor e vestes manchadas de sangue, clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, manifestastes-Vos como menino e mostrastes-Vos a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor há-de triunfar. Fizestes-nos compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices de paz. Amamos o vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo facto de perdurar no mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força, ó Deus. Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões do opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal modo que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.
Natal é epifania: a manifestação de Deus e da sua grande luz num menino que nasceu para nós. Nascido no estábulo de Belém, não nos palácios do rei. Em 1223, quando Francisco de Assis celebrou em Greccio o Natal com um boi, um jumento e uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma nova dimensão do mistério do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como «a festa das festas» – mais do que todas as outras solenidades – e celebrou-a com «solicitude inefável» (2 Celano, 199: Fontes Franciscanas, 787). Beijava, com grande devoção, as imagens do menino e balbuciava-lhes palavras de ternura como se faz com os meninos – refere Tomás de Celano (ibidem). Para a Igreja antiga, a festa das festas era a Páscoa: na ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte, e assim mudou radicalmente o mundo: criara para o homem um lugar no próprio Deus. Pois bem! Francisco não mudou, nem quis mudar, esta hierarquia objectiva das festas, a estrutura interior da fé com o seu centro no mistério pascal. Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu algo de novo: ele descobriu, numa profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus. Este facto de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado numa manjedoura. A ressurreição pressupõe a encarnação. O Filho de Deus visto como menino, como verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do Santo de Assis, transformando a fé em amor. «Manifestaram-se a bondade de Deus e o seu amor pelos homens»: esta frase de São Paulo adquiria assim uma profundidade totalmente nova. No menino do estábulo de Belém, pode-se, por assim dizer, tocar Deus e acarinhá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou assim um segundo centro numa festa que é, antes de mais nada, uma festa do coração.
Tudo isto não tem nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade da humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus menino, porque, neste ser menino, tornou-se-lhe clara a humildade de Deus. Deus tornou-Se pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino Jesus, Deus fez-Se dependente, necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido à condição de pedir o seu, o nosso, amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos negócios, cujo fulgor ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus, que nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos ao Senhor que nos ajude a alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste tempo a fim de podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos a autêntica alegria e a verdadeira luz.
Francisco fazia celebrar a santíssima Eucaristia, sobre a manjedoura que estava colocada entre o boi e o jumento (cf. 1 Celano, 85: Fontes, 469). Depois, sobre esta manjedoura, construiu-se um altar para que, onde outrora os animais comeram o feno, os homens pudessem agora receber, para a salvação da alma e do corpo, a carne do Cordeiro imaculado – Jesus Cristo –, como narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite santa de Greccio, Francisco – como diácono que era – cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal. E toda a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos cânticos natalícios dos Frades (cf.1 Celano, 85 e 86: Fontes, 469 e 470). Era precisamente o encontro com a humildade de Deus que se transformava em júbilo: a sua bondade gera a verdadeira festa.
Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Belém dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio de altura, por onde entravam no edifício os imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo ficado apenas uma entrada com metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no lugar do nascimento de Jesus deve inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra uma verdade mais profunda, pela qual nos queremos deixar tocar nesta noite santa: se quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do cavalo da nossa razão «iluminada». Devemos depor as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual, que nos impede de perceber a proximidade de Deus.
Devemos seguir o caminho interior de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema simplicidade exterior e interior que torna o coração capaz de ver. Devemos inclinar-nos, caminhar espiritualmente por assim dizer a pé, para podermos entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que é diverso dos nossos preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na humildade dum menino acabado de nascer. Celebremos assim a liturgia desta Noite santa, renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos fazer simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou simples. E nesta hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são obrigados a viver o Natal na pobreza, no sofrimento, na condição de emigrante, pedindo que se lhes manifeste a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque a todos, a eles e a nós, aquela bondade que Deus quis, com o nascimento de seu Filho no estábulo, trazer ao mundo. Amen.
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No projeto de amor de Deus o homem encontra-se a si mesmo
O homem encontra-se verdadeiramente a si mesmo não no “sucesso social” nem no bem estar físico e econômico, mas no “projeto de amor de Deus”. Disse o Papa no Angelus recitado no domingo 28 de Agosto com os fiéis reunidos no Pátio do Palácio Pontifício de Castel Gandolfo.
Queridos irmãos e irmãs!
Jesus explica a seus discípulos que deverá “ir a Jerusalém e sofre muito por parte dos anciãos e dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas, ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar” (Mt 16, 21). Tudo parece inverter-se no coração dos discípulos! Como é possível que “Cristo, o filho do Deus vivo”, possa sofrer até a morte? O apóstolo Pedro revolta-se, não aceita esse caminho, toma a palavra e diz ao Mestre: “Deus te livre de tal, Senhor, isso não há de acontecer”. É evidente a divergência entre o desígnio de amor do Pai, que chega até o dom do Filho Unigênito na cruz para salvar a humanidade, e as expectativas, os desejos, os projetos dos discípulos. E este contraste repete-se também hoje: quando a realização da própria vida está orientada unicamente para o sucesso social, para o bem estar físico e econômico, já não se raciocina segundo Deus, mas segundo os homens. Pensar segundo o mundo significa por Deus de lado, não aceitar o seu projeto de amor, impedir-lhe quase de realizar o seu querer sábio. Por isso Jesus diz a Pedro uma palavra particularmente dura: “Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo”. O Senhor ensina que “o caminho dos discípulos é seguir o Crucificado (ir após Ele). Nos três evangelhos explica contudo este seguí-Lo no sinal da Cruz... como o caminho do ‘perder-se a si mesmo’, que é necessário para o homem e sem o qual ele não pode encontrar-se a si mesmo” (Jesus de Nazaré, 2007).
Como os discípulos, assim também a nós Jesus faz o convite: “Se alguém quiser vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me” (Mt 16, 24). O Cristão segue o Senhor quando aceita com amor a própria cruz, que aos olhos do mundo parece uma derrota e uma “perda da vida”, sabendo que não a carrega sozinho, mas com Jesus, partilhando o seu mesmo caminho de doação. Escreve o servo de Deus, Paulo VI: “Misteriosamente, o próprio Cristo, para desenraizar do coração do homem o pecado de presunção e manifestar ao Pai uma obediência total e filial, aceita... morrer na cruz”. Aceitando a morte voluntariamente, Jesus carrega a cruz de todos os homens e torna-se fonte de salvação para toda a humanidade. São Cirilo de Jerusalém comenta: “A cruz vitoriosa iluminou quem estava cego pela ignorância, libertou quem estava preso pelo pecado, trouxe a humanidade a redenção”.
Queridos amigos, confiemos a nossa oração a Virgem Maria e também a Santo Agostinho, do qual se celebra a memória, para que cada um de nós saiba seguir o Senhor pelo caminho da cruz e se deixe transformar pela graça divina, renovando - como diz São Paulo - o modo de pensar “ a fim de conhecerdes a vontade de Deus: o que bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito” (Rm 12, 2).
L’osservatore Romano, 03 de setembro de 2011
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